O maior observatório de aves migratórias, no extremo Sul do Brasil


Um voo, sem escalas, à natureza preservada. No programa Terra da Gente deste sábado (15), o repórter Paulo Gonçalves e o cinegrafista Márcio Silveira viajam pelo extremo Sul do litoral brasileiro. A aventura de exploração é na Lagoa do Peixe, uma extensa planície alagada em território gaúcho. É o maior observatório de aves migratórias no Brasil. Parada estratégica de viajantes incansáveis, que enfrentam até 15 mil quilômetros à procura de temperaturas mais amenas e alimento farto. O banquete a céu aberto e o balé dos maçaricos são um espetáculo em pleno voo. As maiores aves migratórias da região, os flamingos, varrem a lama atrás de alimento num movimento curioso. O trabalho dos pesquisadores na identificação das espécies, que contribuiu para a criação do Parque Nacional da Lagoa do Peixe. O grupo enfrenta frio, vento e água gelada, e se reveza até durante as madrugadas. Conheça também o artesão Eloir, o "Gepeto" das aves já talhou na madeira mais de 220 espécies. E o carro de nome esquisito e à prova de ferrugem e maresia: Fubica, o carro de madeira que ajuda no trabalho dos pescadores profissionais.




Programa 611 – Lago dos Patos/ Peixes
Atenção passageiros com destino à rota de migração. Vôo para o Rio Grande do Sul autorizado. Nenhum aeroporto brasileiro tem tantos pousos e decolagens como esse, na Lagoa do Peixe. Trata-se de uma planície alagada com 40 quilômetros de extensão, paralela ao oceano Atlântico, ponto de encontro dos viajantes alados. É na verdade uma laguna, afinal tem comunicação com o mar. E do oceano vem os nutrientes para o desenvolvimento da cadeia alimentar que atrai milhares de aves migratórias, seres que podem voar até 4.000 quilômetros sem por os pés no chão.A grande maioria das aves vem lá de cima do globo, da região do Circulo Polar Ártico. Fazem jornadas de até 15 mil quilômetros em direção ao Sul, por isso essa parada aqui é estratégica para o reabastecimento.Na lâmina fina de água o alimento é farto e acessível. Exatamente entre a lagoa e o mar as aves fazem o banquete, ganham até 30% do peso para seguir viagem e iniciar a reprodução.A lagoa possui muitos nutrientes, ela é capaz de alimentar uma quantidade muito grande de plâncton, e zooplâncton, base da cadeia alimentar de todos os seres vivos que dependem dos ambientes aquáticos. Esse zooplâncton vai servir de alimento para invertebrados maiores e assim por diante, o que vai culminar nas aves migratórias.As aves vêm através da rota do Atlântico. O percurso vai do Norte do Canadá até a Terra do Fogo no extremo Sul. Durante a jornada elas vão fazendo paradas pela costa, fugindo do frio. Quando vai chegando o inverno no Hemisfério Norte, elas vêm pra cá em busca de um clima mais ameno, e de mais alimento.E quando retornarem, já será primavera no Hemisfério Norte, uma estação mais produtiva. Elas fogem de uma época de escassez de recurso. Depois retornam quando o alimento está abundante novamente.


Maçaricos de alta velocidade
Isac Simão Neto é coordenador de estudos do Cemave, um centro de estudos de aves migratórias que já contabilizou cerca de 6.000 maçaricos num mesmo dia. São as aves mais comuns encontradas por aqui. A maior parte conhecida popularmente como maçarico-de-sobre-branco. Os maçaricos estão sempre em grandes grupos e parecem ter um motorzinho para provas de velocidade.Nas praias a corrida é para fugir das ondas. Eles ficam bem ali, à beira-mar, tentando vencer a concorrência para sair de barriga cheia. A ave pega o molusco e corre. Quando chega a concorrência, ele se afasta mais, levando-o pra longe.Já no banhado esses bichos aproveitam locais com pouca profundidade em busca dos pequenos invertebrados escondidos na lama. Vão bicando até sentir a presa. É como se fossem pescadores da areia.A menor espécie da família dos maçaricos tem apenas 18 centímetros. E sabe que não tem tamanho para enfrentar a concorrência com as maiores. Por isso quando encontra um prato apetitoso, a melhor estratégia é zarpar com a iguaria no bico.E quando partem em revoada os maçaricos formam uma nuvem gigante, com balés imprevisíveis. E ao pousar, caminham em marcha, como se fossem um pelotão do exército.O maçarico reproduz no Alasca e no mar Ártico. Daqui segue para os pontos mais extremos do Sul. Chega a percorrer até 20 mil quilômetros.



Entre batuíras e flamingos
Pequenina também é a batuíra. A de coleira simples vive neste território. Já a espécie de coleira dupla migra do Sul. Vem das ilhas Malvinas e aqui sempre encontra o que procura. No fim de tarde, elas e os maçaricos se unem com outras aves maiores, formando um belo retrato de como a diversidade não tem fronteiras (e nem tamanho).Os flamingos estão na contramão da migração. Enquanto a maioria das aves vem do Norte, eles vêm do Sul. De países vizinhos como o Chile e a Argentina, principalmente das regiões da Patagônia e também dos Andes. Esse bicho tem um filtro no bico. Ele suga a água e retém o alimento. Mas o ritual em busca da comida é um verdadeiro espetáculo.Eles giram como enceradeiras. Remexem a areia tentando encontrar plâncton, as algas que servem de alimento. Além de pequenos camarões e moluscos. Passam horas nesse movimento curioso. Com quase 1 metro só de pernas, essas aves parecem meio desajeitadas. E apesar de serem muito sociais, por vezes ocorrem alguns estranhamentos e um e outro podem “não se bicar”.Acostumadas ao clima frio do Sul, mesmo assim elas são asseadas. Não dispensam banho mesmo com a temperatura baixa. A espécie mais comum aqui é o flamingo chileno, também chamado de ganso-do-norte, ganso-cor-de-rosa ou maranhão. Podem voar até 500 quilômetros por dia. Ao menor sinal de perigo eles se unem, para se proteger.Com as cores fortes que demonstram estarem bem alimentados, os flamingos chegam em setembro e vão embora entre março e abril. São as maiores aves migratórias observadas nesta região. Mas nem por isso menosprezam os demais. Sabem dividir o espaço e dão uma lição de convivência na diversidade. Os mais belos espetáculos durante os vôos são deles.


Preservação garante a atração
Todos os anos milhares de turistas visitam a Lagoa do Peixe. E graças à preservação podem assistir ao desfile das aves migratórias. A Lagoa do Peixe bem que poderia ser das aves. Um destino certo para a ponte aérea com a natureza. Mas no show das aves migratórias, há que se dizer, também há espaço para os verdadeiros donos desse pedaço no Sul do Brasil, distante alguns quilômetros da Lagoa. Na beira da praia muitas outras aves ficam assim, de frente para as ondas, só esperando o cardápio do dia, que será trazido pela maré. Alimento em abundância, com entrega em domicílio.Entre os pratas-de-casa está o pirú-pirú, bicho encontrado aqui em grandes bandos. Eles se concentram tanto nos banhados quanto na beira da praia. Nessa região encontramos muitos deles se equilibrando numa perna só. Pela teoria de alguns cientistas seria uma forma de economizar energia.Essa ave, aliás, tem pernas longas. E um bico poderoso que funciona bem na hora de capturar o alimento. É interessante observar como eles se posicionam de forma parecida. Quem chega por último, parece imitar os demais. É encontrado em toda a costa brasileira e até na América do Norte.À beira-mar encontramos outras espécies residentes como o trinta-réis. Uma ave eficiente no ataque aéreo. Mergulhos perfeitos num bombardeio incessante. Um deles paira no ar, tenta na primeira, não dá. Na segunda, o bote é certeiro. As vezes eles ganham a concorrência dos biguás.Mas eles são maioria e fazem inclusive acrobacias em dupla. Porém com vigor e insistência, o trinta-réis se mostra um mergulhador vitorioso da cadeia alimentar. Pequenos peixes e moluscos não resistem à sua visão privilegiada.Quem estraga o almoço é uma ave difícil de ser avistada por aqui, uma scua. Predadora comum na Antártida, devora as espécies daqui. Para sorte do trinta-réis e de outras aves, ela vai embora logo para comemorar um banho em grupo e em ritmo de festa!À beira-mar o espetáculo é das gaivotas. Ficam ali, na ponta da praia, só esperando a refeição. De preferência um peixe já morto, que vai dar menos trabalho. Um deles parece com dificuldade. A fome é maior que o bico e consegue dar algumas mordiscadas. Mas quando percebe a concorrência, procura uma área mais protegida. É curioso, ele pega e larga o tempo todo e está sempre atento aos vizinhos de espécie.Agora quem aparece interessado no prato alheio é o maçarico. E lá está a gaivota, brincando com o alimento outra vez. É um comportamento comum e arriscado. Uma delas se aventurou a jogar o peixinho. E bateram a carteira dela. Por isso há quem prefira não arriscar. Uma outra não quis compartilhar a refeição, deixou de lado as boas maneiras e se mostrou uma gulosa convicta.


Arte nas mãos
No maior observatório de aves migratórias do Brasil, também encontramos a maior concentração de bichos numa casa: 220 espécies. Mas as autoridades ambientais podem ficar tranqüilas. Essas aves são de madeira reciclada.Na mais tradicional casa de artesanato da cidade, a do seu Eloir, a matéria-prima se transforma. É a magia da arte e da natureza, juntas, criando um espetáculo de cores e formas.Tudo começou com as pinturas que hoje decoram as paredes. A história do artesanato teve início há 11 anos, por acaso. Seu Eloir Antonio Rodrigues da Silva estava em casa parado e decidiu fazer os flamingos de madeira.Foi então que o diretor do parque ficou sabendo e pediu para ver. Aprovado, o trabalho virou profissão. No começo, a atividade o fez ficar perambulando pelas ruas, em busca de matéria-prima.Geralmente o que o pessoal joga no lixo serve de material para a arte de seu Eloir. Não tendo cupim, a madeira já é boa. Fios de cobre servem para compor os detalhes das aves. A madeira deve estar bem seca, porque senão ela “mancha e deforma a ave”.Em resumo: uma gaivota pode virar um maçarico. Mais do que um artista, seu Eloir é um defensor do meio ambiente.Do lixo para o ateliê improvisado. Devagarinho o flamingo vai pegando forma. Cada ave tem a sua estrutura. Lixando aqui e ali. Tem que ficar bem lisinho para a madeira receber a pintura. Depois de 11 anos ele nem precisa olhar mais numa foto. Tudo está gravado na mente. Em 20 minutos está pronto o flamingo eternizado em madeira.O seu Eloir produz as aves do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, de outras partes do Brasil e até do mundo. A gente viu até uma ave internacional, o galo-das-pradarias, norte-americano, que ocorre no Norte dos Estados Unidos e no Oeste do Canadá.



Monitoramento das aves
É fim de tarde da na Lagoa do Peixe. É o começo de jornada para a expedição do Cemave (Centro Nacional de Pesquisa para Conservação das Aves Silvestres). Os pesquisadores montam 30 redes. É o equipamento usado para o trabalho de captura, que depois ajudará a identificar as espécies migratórias.As variáveis são muitas. Por isso é essencial prestar atenção na maré, nas condições da Lua (se é cheia ou nova), e também no vento. As melhores condições para capturar são com maré baixa e sem Lua (se ela estiver no céu, em função da claridade, as aves muitas vezes enxergam as redes e isso atrapalha o trabalho dos pesquisadores).Ao todo são seis pesquisadores, de várias partes do País. Eles já identificaram mais de 500 mil aves em território nacional. A cada 2 horas a rede é revisada, e os bichos retirados (mais tempo do que isso pode criar um estresse no bicho, além de se machucar). Por noite eles conseguem tirar 50 bichos ou mais. Já chegaram a pegar 200 numa noite.É noite de Lua crescente, que não é a mais indicada. Faz muito frio e venta. Mas não há tempo ruim para esse pessoal. No exato momento em que as redes eram armadas, já pintou novidade: o maçarico-branco.Tem sido a ave que os pesquisadores mais capturam. A maré começou a subir e por isso os bichos começaram a buscar áreas mais secas. São 15 minutos para desvencilhar a ave. Trabalhão para nada. As anilhas acabaram.Às 2 horas da manhã o pessoal estava se preparando para mais uma vistoria. Um frio danado e todo mundo morrendo de sono. Só há tempo para um cochilinho de meia hora, no máximo 40 minutos. A previsão era de 10 graus.Para piorar, a maré estava subindo. Não teve jeito: tivemos que entrar na água gelada para checar se não tinha nada. Até porque se tivesse um bicho preso na rede, vinha o peso na consciência.Nenhum bicho, e pior: o vento atrapalhou o trabalho. A rede teve que ser reerguida. Mas por causa da velocidade dos ventos os animais procuraram abrigo para se proteger em outras áreas.Os ventos voltaram a derrubar as redes, e a captura de pássaros se transformou na de siris. No dia seguinte as redes foram mudadas de lugar. Alem do trinta-réis, cai na rede uma batuíra.Chega 6h30 da manhã. Essa é a última vistoria que o pessoal faz. O dia estava claro e bem mais tranquilo para trabalhar. Lá estavam eles na água gelada. Era um dos dias mais frios da semana. O pessoal estava pronto pra trabalhar.Vários bichos entraram na rede. Principalmente maçaricos e trinta-réis. As aves capturadas são colocadas numa caixa e levadas para o acampamento, onde um laboratório foi improvisado. Antes de manipular os bichos, os pesquisadores seguem à risca os protocolos: são luvas, máscaras, avental e até proteção para os pés.Começa o trabalho de identificação das espécies. Um maçarico, por exemplo, viajou mais de 9.000 quilômetros. É o de papo-vermelho. Ele já apareceu com a plumagem reprodutiva, estava pronto para ir embora.Depois de todas as informações devidamente registradas as aves recebem a anilha. Esse anel de metal servirá de base para o acompanhamento da migração. Pesa 1 grama ou menos e pode trazer tanto informações de deslocamento, quanto informações da longevidade da ave.As aves são soltas, mas deixam informações valiosas para os especialistas. Foram os estudos do Cemave que deram origem ao Parque Nacional da Lagoa do Peixe e proporcionaram a criação das leis de proteção. Um exemplo de que o homem pode colaborar para a preservação das espécies.



A lagoa tem fubica
A Lagoa do Peixe fica no município de Mostardas, há 200 quilômetros de Porto Alegre. Uma cidade que respira meio ambiente e pesca. Entre os profissionais, a força para puxar as redes pode vir de um veículo curioso, a fubica. Uma caminhonete feita de madeira. Só algumas partes do veículo se mantêm com o ferro, já meio enferrujado.O seu Claudio é um dos proprietários dessa máquina que resiste ao tempo e aos efeitos da maresia. Quase tudo é feito em madeira. Só o motor e o chassi fazem parte do carro original. São quase 40 anos circulando com a caminhonete. E sem nenhum problema grave.Para andar com a fubica o condutor também precisa ser meio cara de pau. Sem documento e sem freio!!! O controle tem que ser no câmbio. Mas é a fubica que ajuda esse pessoal na pescaria profissional.Já entre os amadores os arremessos na beira da praia fazem a alegria. Esses vieram de Porto Alegre. Viajaram 200 quilômetros pelo prazer de uma fisgada. A isca é de graça.Os mariscos debaixo da terra. É pelo buraquinho que eles encontram a isca. E não é que a isca funciona? O peixe é o papa-terra que aqui chega ao máximo a um quilo e meio.Outro grupo veio de Caxias do Sul. Mais de 400 quilômetros de estrada em busca de emoções. Grandes ou pequenas. Alceu Tessali viajou para se divertir. E não é que conseguiu! Pescou um pampinho e logo o devolveu para a natureza.E, enfim, conseguiu um dublê de papa-terras. Tá explicado porque o lugar se chama Lagoa do Peixe. Na água e no ar, a natureza se mostra exuberante.

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